quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Carta de despedida


Não sei o que é liberdade. Jamais a conheci. E se porventura em algum momento ela passou por mim, não a percebi. Faço uma pausa para dizer que estou mentindo. Sempre invejei a forma como você se movia. Sempre invejei tua liberdade. Por desconhecer isso que chamam de liberdade – e me deixa tão angustiada – passei a acreditar que eu só a conheceria me fazendo prisioneira da tua liberdade. A tua liberdade me libertava. A menina assustada e febril vestia seu vestido mais bonito para saborear a delícia de ser despida no meio da noite dos olhos de menino – escondidos atrás dos olhos castanhos escuros de homem seguro. Nua e insegura a minha solidão toda crua queria ser alimento para tua fome.

Desperdiçada.

Agora nós estamos dançando. Estou livre da tua liberdade. Você sorri por acreditar na minha fé cega em seu amor que jamais foi capaz de transpor as barreiras do seu próprio corpo. Dançamos. Eu com minha solidão – maculada. Você com a tua solidão – intacta. Amar é não ficar intacto, grito. Mas a música está muito alta. Não podes me ouvir. Nunca fostes capaz de me ouvir. Estamos dançando sem nos tocarmos. Estamos no meio dos escombros. E não há nada que possa ser reconstruído. (A não ser meus próprios pedaços). Agora quero apenas me entregar ao prazer dessa última dança. Ainda que estejamos tão longe. Ainda que não possas me ouvir. Ainda que possas ver apenas o que sobrou de mim. Do meu vestido só resta os trapos. Entrego-me ao prazer dessa última dança. A dança da despedida.

Adeus, amor.

P.S.: Estou ferida. Mas não choro mais. Nem sempre o passado cicatriza.

domingo, 27 de setembro de 2015

Lápide


jaz no meu corpo a tua alma
jaz na minha pele o teu toque
jaz no meu toque a maldita textura da tua pele
jaz nos meus olhos lembranças tuas
jaz na minha língua o gosto
das tuas virilhas escorrendo
gota a gota penetrando por entre
teus pelos me rasgam as coxas
brancas e quentes
quente engulo toda tua frieza
e não, não consegues apagar
o fogo a brasa a sede a fome

temes que eu – na minha pequenez
– te corte entre os dentes e te engula
todo perdido no labirinto escondido
em minha alma
temes as correntes construídas
por suas próprias mãos e queres
a liberdade que há entre o sim
e o não

epílogo
: o amor é morte
e eu te matei
em mim

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Manequins


[esqueci de crescer - por dentro. esqueci também quantos nomes já tive. mas não esqueci que eu vivia sozinho, medroso e assustado no canto da sala, do quarto, da vida. vez em quando nem os braços mais fortes são capazes de me livrar do meu desamparo e nem proteger minha inevitável desproteção. acho que nunca tive um peito de ferro. o amor não sobreviveria. talvez nem eu conseguiria sobreviver sem amor. ainda que adormecido embaixo dos delicados detalhes do cotidiano o amor continua ali, vivo, respirando. meu peito sempre foi de carne, sempre sangrou, sempre doeu. e, quando não doía, sentia medo e ficava assustado e até um pouco desesperado. quando a dor faz silêncio, não sei se curou ou se morri. nunca soube lidar com uma existência indolor. mas não sou masoquista. só preciso me sentir vivo. e eu vivia ainda que sempre estivesse esgueirando-me pelas beiradas da vida pra ninguém perceber que algo eu escondia. não havia nada a esconder, mas eu escondia até de mim. lembro-me que confundia manequins com pessoas. estendia a mão para eles e os cumprimentava na esperança de que me respondessem. manequins, muitas vezes, são mais vivos que pessoas. e pessoas parecem ser mais sem vida do que manequins. meu olhar varre todos os cantos numa rua cheia. pessoas andam freneticamente de um lado ao outro, atravessando no sinal vermelho, esbarrando no ombro alheio, desviando com astúcia dos que só querem fazer algumas perguntas. meu olhar não encontra outro olhar. meu olhar se afoga nesse mar de almas apressadas. e a pressa e o descuido e o medo de ter sua solidão violada fizeram das pessoas manequins. e agora eu, que confundia manequins com pessoas, confundo pessoas com manequins. e estou tentando, quase inutilmente, encontrar um resquício de vida embaixo de cada manequim. que, na verdade, são pessoas que nem olham pra mim]

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Copo de vidro


Desastrada. O próprio desastre. Destrutiva. Autodestrutiva. Sou o pé sobre o copo de vidro. Sou o copo de vidro suportando o peso do pé descuidado. Cuidado. Por que você se aproxima tanto mesmo sabendo dos riscos? Sou a força que pressiona o copo contra o chão. Sou o estalar do copo de vidro se quebrando contra o pé. O meu pé de menina descuidada e desastrada. Sem cuidado cirúrgico. Arranco a máscara que recobre verdades adormecidas. Sou o corte no pé. Sou o sangue jorrando copiosamente. Vou morrer sangrando antes que me suturem. Você é desastrada, menina. Pra onde estava olhando? Os olhos da minha mãe diziam apavorados com tanto sangue. Mamãe, não sei pra onde eu estava olhando. Nem ao menos sei se estava olhando. Vez em quando parece que estou imersa no nada e tudo que me cerca parece não existir. Só meu corpo no meio do nada. Em alguns instantes angustiantes sinto até que minha existência se misturou ao nada. Perco o contorno, as bordas de mim são costuradas no vazio e o vazio me abraça com amor e ódio.
O pronto socorro está quase fechando. Mamãe não aguenta mais ver tanto sangue. Mamãe tem medo de me perder. Mamãe quer me suturar sem agulhas e linhas. Sou o desespero da minha mãe querendo me salvar. Sou o sangue que não obedece e não para de escorrer. Sou os panos tentando secar, tentando cobrir o corte no pé, tentando estancar. Não estanca. E o pronto socorre não me socorre. Estou na maca. Sou a própria maca suportando o peso do corpo que geme e não grita. O corpo que se contorce como uma parturiente, mas que jamais vai parir. Sou o próprio corpo que padece na brevidade das horas. Parece a eternidade acontecendo quando as mãos de alguém que não conheço se misturam com o olhar de mamãe se compadecendo da minha dor. Sou a dor que não passa. Viver é trazer um corte no âmago, sangrar copiosamente, hemorragia que não estanca, tudo sobre panos, escondido. Os olhos de mamãe são capazes de rasgar os véus que escondem minha dor. Minha dor dói nos olhos dela. Os olhos dela doem em mim. A crueza do amor se expõe quando duas dores doem juntas. Sem anestesia. É o pedido de socorro e a ânsia de socorrer.
Sinto pontadas em meu pé ferido. A estranha está tentando amenizar minha dor. Está tentando me anestesiar. Ela deveria me dar algo pra beber. Deveria me deixar bêbada, me entorpecer. Não, sou nova demais. Mamãe nem ao menos me deixava tocar numa taça de vinho. Escuto Cazuza sussurrar em meu ouvido: “nem dopante me dopa a vida me endoida nem dopante me dopa a vida me endoida a vida me endoida”. Alguém aí, me dê algo pra beber. Preciso me dopar pra dor passar. Ou ao menos amenizar. Silêncio. Ah, como sou tagarela. Mamãe sempre teve que me mandar calar não só a boca como também os cotovelos. Falo pelos cotovelos e pelos poros. Não, você nunca soube, mamãe. Mas eu falo por todos os poros. Eu transpiro palavras. Falar é me manter ancorada aqui. Palavras dão consistência ao meu corpo. Palavras dão consistência à minha existência. Mamãe não quer me perder. Eu não quero me perder. Estou sentindo as dores do parto mesmo sem estar grávida. Minto. Estou grávida sim. A vida me fez gestar minha própria alma. Agora sei que viver é estar em constante trabalho de parto. Como dói, mamãe. Minha alma quer me dizer algo. A dor fala sem palavras, sem emitir sons.
E os olhos de mamãe me chamando. E os olhos de mamãe gritando. “Volta para o meu útero que eu te protejo de tudo. Protejo-te dos copos de vidro. Protejo-te dos cortes que a vida faz. Protejo-te de você mesma. Regresse para dentro de mim”. Quisera eu que isso fosse possível, mamãe. A vida fere e não sutura. A vida não estanca mesmo quando meu sangue para de jorrar. Quero gritar. Quero dizer que não quero mais. É tão paradoxo o meu querer. Quero me livrar desse infortúnio, mas não me sei longe dele. As mãos estranhas cessam de me tocar e suturar meu pé. O sangue tinge os lençóis sobre a maca. Mamãe não está mais pálida. Eu não estou mais chorosa. A estranha diz que posso ir embora. Acabou. Mamãe me pega no colo. Vou embora. Suturada. Mas a vida continua sangrando. E que ela não entanque.

terça-feira, 10 de março de 2015

A (nossa) dança


Dance. Dance comigo mais uma vez. Você me ama? Dance comigo. Sabes das minhas vertigens e das minhas incontáveis quedas no abismo de mim. Sim, você me ama. Você tirou minhas dores pra dançar e agora meu peito se esvaziou de toda essa urgência angustiante que é querer. Continuo querendo. Mas quero de uma forma quase inaudível. Você se inclina sobre mim. Espera, acho que vou cair de novo. Você me segura. Eu não te ouvi eu não te ouvi fale de novo fale só mais uma vez. Você não se cansa de tentar saber o que quero o que eu disse o que eu sinto. Escapou. Escapei. Não sei voltar. Não quero voltar. Você pede mais uma vez que eu repita o que eu disse. Inaudível até pra mim. Vez em quando é melhor me abster de saber o que quero. Só preciso querer. Baixo ou alto. Quero. Isso não te basta. Você quer mais. Você quer o meu querer. Delicadamente você conduz meus passos para que eu não tropece em nossos medos e caia mais uma vez no abismo. Se eu cair, você cai junto? Amar é se lançar no abismo do outro mesmo sem saber se haverá salvação. Se eu cair, você me salva? Salva? Não responda. Recuso-me a saber de tudo. Saber tudo enjoa. O não-saber me faz mais humano, mais gente. Estou constantemente com essa ânsia de vômito misturada com essa fome de um pedaço do mundo misturada com esses desejos velados entre os lábios e os dentes misturada com nossos medos e nossas angústias. Queria vomitar. Temo vomitar e me tornar vazio do vazio. Temo os teus temores mesmo quando você não parece estar com medo. A dança continua. A música não finda. Não sei da finitude das coisas. Nunca quis saber. Apenas dance... comigo... agora...

sábado, 7 de março de 2015

Umbilical


O mundo pode acabar em água. O mundo pode acabar em fogo. Tanto faz. É tudo lá fora. O mundo desaba. Chove torrencialmente. O mundo está desabando lá fora. Nós estamos aqui dentro. Quatro paredes. Quatro olhos. Quatro mãos. O mundo se cala quando eu desabo a minha existência nos teus braços. O mundo não pesa mais quando a minha alma desagua nos teus lábios. Vejo-te sorver de mim. Deixe-me oco. Sou teu. Deixe-me vazio. Sou teu. Não sei me ser mais. O cordão umbilical, que prendia minha alma ao meu corpo, foi rompido. O meu parto íntimo. Pari a minha alma para dentro de ti. O gozo na dor de me libertar de mim. Deixa-me doer essas dores, amor. E as tuas mãos (ah, não afaste suas mãos de mim), e os teus dedos (não, não me prive do teu toque!), e a tua pele (me queira com ela me devore com ela me ame com ela), e os teus olhos (não esconda de mim com tuas pálpebras, corte-as se quiser)... e você, você me alimenta agora. A única distância que consigo suportar é a desse cordão umbilical entre nós. Entre a minha alma e a tua. Não me devolva o que já é teu. Sim, eu sou teu. Estou num limbo terrível. Entre a vida e a morte. O limbo é o teu toque. Se você não me toca, tudo fica pesado demais e não posso respirar e não posso sentir a vida pulsando em minhas vísceras, em minha carne, em meu peito. Se você me toca, respiro, posso viver e sentir a vida jorrando pelas minhas artérias numa violência que me leva ao medo de ter minhas veias violentadas e meu coração esmagado. Você esmaga tudo em volta para que eu possa existir.