Desastrada. O próprio desastre.
Destrutiva. Autodestrutiva. Sou o pé sobre o copo de vidro. Sou o copo de vidro
suportando o peso do pé descuidado. Cuidado. Por que você se aproxima tanto
mesmo sabendo dos riscos? Sou a força que pressiona o copo contra o chão. Sou o
estalar do copo de vidro se quebrando contra o pé. O meu pé de menina descuidada
e desastrada. Sem cuidado cirúrgico. Arranco a máscara que recobre verdades
adormecidas. Sou o corte no pé. Sou o sangue jorrando copiosamente. Vou morrer
sangrando antes que me suturem. Você é desastrada, menina. Pra onde estava
olhando? Os olhos da minha mãe diziam apavorados com tanto sangue. Mamãe, não
sei pra onde eu estava olhando. Nem ao menos sei se estava olhando. Vez em
quando parece que estou imersa no nada e tudo que me cerca parece não existir.
Só meu corpo no meio do nada. Em alguns instantes angustiantes sinto até que
minha existência se misturou ao nada. Perco o contorno, as bordas de mim são
costuradas no vazio e o vazio me abraça com amor e ódio.
O pronto socorro está quase fechando.
Mamãe não aguenta mais ver tanto sangue. Mamãe tem medo de me perder. Mamãe
quer me suturar sem agulhas e linhas. Sou o desespero da minha mãe querendo me
salvar. Sou o sangue que não obedece e não para de escorrer. Sou os panos
tentando secar, tentando cobrir o corte no pé, tentando estancar. Não estanca.
E o pronto socorre não me socorre. Estou na maca. Sou a própria maca suportando
o peso do corpo que geme e não grita. O corpo que se contorce como uma parturiente,
mas que jamais vai parir. Sou o próprio corpo que padece na brevidade das
horas. Parece a eternidade acontecendo quando as mãos de alguém que não conheço
se misturam com o olhar de mamãe se compadecendo da minha dor. Sou a dor que
não passa. Viver é trazer um corte no âmago, sangrar copiosamente, hemorragia
que não estanca, tudo sobre panos, escondido. Os olhos de mamãe são capazes de
rasgar os véus que escondem minha dor. Minha dor dói nos olhos dela. Os olhos
dela doem em mim. A crueza do amor se expõe quando duas dores doem juntas. Sem
anestesia. É o pedido de socorro e a ânsia de socorrer.
Sinto pontadas em meu pé ferido. A
estranha está tentando amenizar minha dor. Está tentando me anestesiar. Ela deveria
me dar algo pra beber. Deveria me deixar bêbada, me entorpecer. Não, sou nova
demais. Mamãe nem ao menos me deixava tocar numa taça de vinho. Escuto Cazuza
sussurrar em meu ouvido: “nem dopante me dopa a vida me endoida nem dopante me
dopa a vida me endoida a vida me endoida”. Alguém aí, me dê algo pra beber. Preciso
me dopar pra dor passar. Ou ao menos amenizar. Silêncio. Ah, como sou tagarela.
Mamãe sempre teve que me mandar calar não só a boca como também os cotovelos.
Falo pelos cotovelos e pelos poros. Não, você nunca soube, mamãe. Mas eu falo
por todos os poros. Eu transpiro palavras. Falar é me manter ancorada aqui.
Palavras dão consistência ao meu corpo. Palavras dão consistência à minha
existência. Mamãe não quer me perder. Eu não quero me perder. Estou sentindo as
dores do parto mesmo sem estar grávida. Minto. Estou grávida sim. A vida me fez
gestar minha própria alma. Agora sei que viver é estar em constante trabalho de
parto. Como dói, mamãe. Minha alma quer me dizer algo. A dor fala sem palavras,
sem emitir sons.
E os olhos de mamãe me chamando. E os olhos
de mamãe gritando. “Volta para o meu útero que eu te protejo de tudo. Protejo-te
dos copos de vidro. Protejo-te dos cortes que a vida faz. Protejo-te de você
mesma. Regresse para dentro de mim”. Quisera eu que isso fosse possível, mamãe.
A vida fere e não sutura. A vida não estanca mesmo quando meu sangue para de
jorrar. Quero gritar. Quero dizer que não quero mais. É tão paradoxo o meu querer.
Quero me livrar desse infortúnio, mas não me sei longe dele. As mãos estranhas
cessam de me tocar e suturar meu pé. O sangue tinge os lençóis sobre a maca.
Mamãe não está mais pálida. Eu não estou mais chorosa. A estranha diz que posso
ir embora. Acabou. Mamãe me pega no colo. Vou embora. Suturada. Mas a vida
continua sangrando. E que ela não entanque.