quinta-feira, 25 de junho de 2015

Copo de vidro


Desastrada. O próprio desastre. Destrutiva. Autodestrutiva. Sou o pé sobre o copo de vidro. Sou o copo de vidro suportando o peso do pé descuidado. Cuidado. Por que você se aproxima tanto mesmo sabendo dos riscos? Sou a força que pressiona o copo contra o chão. Sou o estalar do copo de vidro se quebrando contra o pé. O meu pé de menina descuidada e desastrada. Sem cuidado cirúrgico. Arranco a máscara que recobre verdades adormecidas. Sou o corte no pé. Sou o sangue jorrando copiosamente. Vou morrer sangrando antes que me suturem. Você é desastrada, menina. Pra onde estava olhando? Os olhos da minha mãe diziam apavorados com tanto sangue. Mamãe, não sei pra onde eu estava olhando. Nem ao menos sei se estava olhando. Vez em quando parece que estou imersa no nada e tudo que me cerca parece não existir. Só meu corpo no meio do nada. Em alguns instantes angustiantes sinto até que minha existência se misturou ao nada. Perco o contorno, as bordas de mim são costuradas no vazio e o vazio me abraça com amor e ódio.
O pronto socorro está quase fechando. Mamãe não aguenta mais ver tanto sangue. Mamãe tem medo de me perder. Mamãe quer me suturar sem agulhas e linhas. Sou o desespero da minha mãe querendo me salvar. Sou o sangue que não obedece e não para de escorrer. Sou os panos tentando secar, tentando cobrir o corte no pé, tentando estancar. Não estanca. E o pronto socorre não me socorre. Estou na maca. Sou a própria maca suportando o peso do corpo que geme e não grita. O corpo que se contorce como uma parturiente, mas que jamais vai parir. Sou o próprio corpo que padece na brevidade das horas. Parece a eternidade acontecendo quando as mãos de alguém que não conheço se misturam com o olhar de mamãe se compadecendo da minha dor. Sou a dor que não passa. Viver é trazer um corte no âmago, sangrar copiosamente, hemorragia que não estanca, tudo sobre panos, escondido. Os olhos de mamãe são capazes de rasgar os véus que escondem minha dor. Minha dor dói nos olhos dela. Os olhos dela doem em mim. A crueza do amor se expõe quando duas dores doem juntas. Sem anestesia. É o pedido de socorro e a ânsia de socorrer.
Sinto pontadas em meu pé ferido. A estranha está tentando amenizar minha dor. Está tentando me anestesiar. Ela deveria me dar algo pra beber. Deveria me deixar bêbada, me entorpecer. Não, sou nova demais. Mamãe nem ao menos me deixava tocar numa taça de vinho. Escuto Cazuza sussurrar em meu ouvido: “nem dopante me dopa a vida me endoida nem dopante me dopa a vida me endoida a vida me endoida”. Alguém aí, me dê algo pra beber. Preciso me dopar pra dor passar. Ou ao menos amenizar. Silêncio. Ah, como sou tagarela. Mamãe sempre teve que me mandar calar não só a boca como também os cotovelos. Falo pelos cotovelos e pelos poros. Não, você nunca soube, mamãe. Mas eu falo por todos os poros. Eu transpiro palavras. Falar é me manter ancorada aqui. Palavras dão consistência ao meu corpo. Palavras dão consistência à minha existência. Mamãe não quer me perder. Eu não quero me perder. Estou sentindo as dores do parto mesmo sem estar grávida. Minto. Estou grávida sim. A vida me fez gestar minha própria alma. Agora sei que viver é estar em constante trabalho de parto. Como dói, mamãe. Minha alma quer me dizer algo. A dor fala sem palavras, sem emitir sons.
E os olhos de mamãe me chamando. E os olhos de mamãe gritando. “Volta para o meu útero que eu te protejo de tudo. Protejo-te dos copos de vidro. Protejo-te dos cortes que a vida faz. Protejo-te de você mesma. Regresse para dentro de mim”. Quisera eu que isso fosse possível, mamãe. A vida fere e não sutura. A vida não estanca mesmo quando meu sangue para de jorrar. Quero gritar. Quero dizer que não quero mais. É tão paradoxo o meu querer. Quero me livrar desse infortúnio, mas não me sei longe dele. As mãos estranhas cessam de me tocar e suturar meu pé. O sangue tinge os lençóis sobre a maca. Mamãe não está mais pálida. Eu não estou mais chorosa. A estranha diz que posso ir embora. Acabou. Mamãe me pega no colo. Vou embora. Suturada. Mas a vida continua sangrando. E que ela não entanque.