quarta-feira, 29 de maio de 2013

O teu olhar


Você me viu de longe e num segundo eu já estava perto demais. Você me viu e teu olhar me despiu. Você me viu sozinho. Eu estava desprotegido. Eu estava encostado na parede daquele lugar frio. Eu tentava me apoiar na parede porque minha alma já estava enfraquecida. E você me viu.
Teu olhar... ah, teu olhar me alcançou. Teu olhar violou a minha intimidade, o meu secreto, o meu esconderijo. O teu olhar violentou a minha alma. Sinto-me rasgado. O teu olhar estuprou a minha alma. Aposto que você nem notou o que fez. (Não o que você fez, mas o teu olhar). Vivo nessa linha tênue. Desejo encontrar um olhar onde o meu possa descansar. Mas, por outro lado, tenho medo quando alguém me invade dessa forma e me deixa completamente nu. Sempre tive vergonha de ficar despido diante de qualquer pessoa. Disso você sabe muito bem. Sou um tanto tímido.
Mas eu não soube, nem sei e acho que nunca saberei me proteger de você. Teu olhar me expôs e eu vi aquilo que não queria ver. Eu me vi no teu olhar. O teu olhar me devolveu pra mim. Me assustei. De repente, você já estava diante de mim e me estendendo a mão e me convidando gentilmente para uma dança e me convidando a voar em teus braços. Eu ali, todo enfraquecido, todo perdido e encontrado no teu olhar, só queria beber até a última gota de você. Então você me olhou assustado, sem entender nada. Perguntou-me confuso “e se eu secar por dentro?” Ah, baby, você não seca. Não, você não seca.
Deixa eu te beber. Não, eu nunca fiquei bêbado. Eu não combino com bebida. Se eu misturar pode dar merda. Você sabe. Você sabe tanto de mim. Prometo te beber aos poucos. Gole após gole. Quero estar lúcido até o fim (se é que existe mesmo um fim). Mas vez em quando posso exagerar e te beber de vez. Assim mesmo, num gole só. Deixa. Por favor, me deixa mergulhar de cabeça nesse teu olhar-mar. Deixa eu me afogar. Deixa eu me encontrar. Deixa! Estou sedento. Só você consegue saciar a minha sede.
Estendi a mão, mas já não era mais eu que me conduzia. Era o teu olhar. Como uma marionete, eu era comandado pelo teu olhar. Se eles se fechavam, minha alma mergulhava numa profunda penumbra. Não feche os olhos. Não pisque mais. Teu olhar me mantem na luz. Teu olhar me chamou pra dançar antes mesmo de teus lábios pronunciarem o convite gentil. Não consegui dizer sim. Minhas mãos disseram por mim.
Dançamos. Meu corpo já não me pesava mais. Ou era minha alma que não me pesava mais? Não sei dizer. Só sei dizer que eu estava leve. E você me levava e você me trazia e você me prendia e você me perdia e você apagava a luz e você acendia e eu só dizia sim e eu queria e eu querendo mais e eu com essa sede de uma vida toda sem beber um pingo d’água. Você era minha redenção. Você era a minha segurança. Só que tuas mãos me soltaram e teus olhos se desviaram. Você foi a minha perdição.
Tão irônico e tão cruel. Você me salvou, mas você fez com que eu me perdesse. Agora vivo assim. Procurando. Sim, eu ainda procuro. Mesmo que eu diga para tantos que já me cansei, que já desisti e que amor não é pra mim. Escondi minha esperança no fundo do peito, lá no fundo mesmo, que é pra ninguém se atrever a destruí-la. Espero. Há um silêncio em mim que se chama espera. De olhar em olhar vou entendendo que há pessoas que ainda têm medo. Medo se encontrarem consigo mesmas. Medo de se encontrarem com o que são. Medo de se verem refletidas num olhar alheio. Medo de despencar num abismo. Ah, mas eu vou. Vou com medo mesmo.  Não sei se isso é coragem ou ousadia. Sei que vou. Talvez te encontre de novo. Só não sei se ainda me encontrarei no teu olhar.
Ah, o teu olhar. Vem me visitar.


terça-feira, 21 de maio de 2013

Estou doente


Estou doente. Extremamente enfermo. Dói muito. Agulhas são inseridas em minhas veias. Estão tentando – em vão – me curar. Elas, as agulhas, alcançam minha alma. Não me venha com esse discurso enjoativo de que sou insano ou dramático demais. Porque estou enfermo. E a doença sou eu. Sim, estou enfermo de mim. Estou sofrendo com o excesso do que sou. Sou um transbordamento de mim mesmo. Sou uma mistura do fui, do que sou e do que queria ser. Sempre me perco e caio na ilusão inconcebível de achar que posso me encontrar no outro. Mais que isso: constantemente (e estranhamente) penso que existe alguém que pode me curar de mim. Tento encontrar no outro a minha redenção e o meu descanso. Mas o outro, diversas vezes, me cansa muito. No outro, eu já encontrei a minha perdição. Porque o outro está se procurando em outro alguém. Vivemos assim. Vivemos nessa interminável procura por nós mesmos. E, quanto mais nos procuramos, mais nos perdemos. A vida é um labirinto. Se a gente se desespera, a saída nunca é encontrada – se é que existe mesmo uma saída. Não há motivos para desesperos. Não há, mas a gente sempre encontra um motivo (por menor que seja) pra se desesperar. Quando se torna perigoso demais viver dentro de mim, desejo ardentemente uma saída de emergência. Uma porta que me permita escapar do incêndio das minhas emoções e sentimentos. Pois há dias que são tão pesados. O tic-tac do relógio se torna ensurdecedor. (Dor, emudeça em meu peito, por favor.) Com sinceridade te digo que vez em quando me canso de mim. No entanto, é com a mesma transparência que te confesso que, se eu não fosse eu, com certeza, seria da mesma forma. O ser humano nunca está suficientemente contente com o que é e com o que tem. Somos inconformados.  Procuro refúgio e procuro mais. Procuro um subterfúgio. Procuro uma sombra num dia ensolarado e extremamente quente. Quero fugir. Quero me esconder. Mas não há escapatória. Tento fazer a todo custo, e de qualquer maneira, uma transfusão do que o outro é, em mim. Porém, há uma ligeira rejeição. Não há cura. Não! Estou fadado a ser eu. Essa talvez seja a única doença que nunca – e jamais – conseguirão encontrar uma cura. Quando éramos crianças geralmente chorávamos bastante e depois dormíamos um tanto mais. Tudo para descansar de alguma dor da infância, de alguma palavra dura ou de alguma briguinha infantil. Essa era a melhor forma de resolver nossos “probleminhas”. Aí crescemos, e dormir se tornou um descanso ou um adiamento da dor. Esse sono não é interminável. A dor também não é. Estar acordado, e permitir que a dor doa, talvez seja uma forma de sentir a vida pulsando em nós. Acho que eu não conseguiria viver num corpo que não sente dor. Se dói, é porque estamos vivos. Não sei se há uma conclusão para tudo. Acho que não. Pensamentos sempre se renovam e deixam de ser os mesmos. O que concluímos ontem, poderá ser o oposto do que pensamos hoje. A vida nos trata assim. A vida nos faz assim. Mostrando as possibilidades, revirando nossas certezas, dissolvendo nossas incertezas, fazendo o (im)possível. Montando, desmontando, remontando o que somos e o que desejamos ser. Chega! Desisti. Não há quem me cure de mim.

P.S.: Só falta eu me convencer disso.


sexta-feira, 17 de maio de 2013

Um conto sem título


A mesa estava posta desde o pôr-do-sol. Ela não queria que alguma coisa desse errado dessa vez. Não que houvesse acontecido outros encontros entre os dois. Aquele era o primeiro, e talvez único encontro. Afinal, é preciso considerar todas as hipóteses. Ela sabia bem disso. Já havia sofrido muitas decepções. Já havia alçado voo nas asas das expectativas e também havia caído de cara no chão por conta da realidade que, quase sempre, faz questão de cortar as asas de quem se ilude demais. Coração bobo. Coração cheio de sonhos e ilusões. Coração cheio de amor e carências. Um coração de menina. Um coração de mulher. Muitos corações dentro de um só corpo. Muitos desejos numa só pele. Muita sede num só olhar. Ela era um excesso em pessoa. Mas naquele momento ela precisava estar serena e calma. Por isso, a pressa com a arrumação de seu pequeno apartamento de frente pro mar. Aquela vista era realmente linda. Ela estava na varanda que dava de frente para o mar e para o esplendido pôr-do-sol. Não havia forma melhor de se aquietar um pouco antes das sete e meia. Esse era o horário em que haviam marcado o tal primeiro encontro. Na verdade, eles já se conheciam. Na verdade, eles já se namoravam. Pelo olhar. O olhar dela sempre o beijava todos os dias quando eles se cruzavam em sua rotineira caminhada matinal. Ele sempre distraído. Ela sempre atenta. Ela nunca desperdiçava uma oportunidade. Tudo era uma possibilidade de amor. Talvez esse fosse o principal motivo de tantas decepções. Mas, enfim, ela o namorava com o olhar. Ele não sabia disso. Porém, numa manhã um pouco acinzentada, ela tropeçou enquanto tentava encontrar o olhar dele. Ela era desengonçada. Mas isso foi a seu favor naquele momento. Ele ofereceu ajuda e perguntou se estava tudo bem. Ela corou de vergonha e sorriu meio sem graça com o toque gentil dele sobre seu ombro. Ela desejou que ele nunca mais tirasse a mão do corpo dela. Mas logo ele o fez. Ela disse que estava tudo bem e agradeceu pela preocupação. Ele continuou e ela seguiu um pouco grogue e cambaleando. Aquele olhar. Aquele olhar era o vinho para a alma dela. Ela não costumava beber muito. Não sabia como era estar bêbada. Sempre achou uma fuga da realidade e covardia beber até ficar embriagada. No entanto, de embriaguez da alma ela entendia muito bem. Foi justamente aquele olhar que a fez ficar embriagada. E como um viciado em álcool ela sentia uma necessidade enorme de tomar mais daquela bebida. Ela queria mais aquele olhar. Os dias passaram. O olhar dele deixou de ser indiferente. Ele começou a percebê-la. Os contornos do seu rosto magro. As ondas em seus longos cabelos louros, amarrados num rabo de cavalo. Pra ele, ela poderia ser só mais uma. Mas, pra ela, ele era mais que isso. Mais que um corpo dotado de músculos e beleza. Eles faziam caminhos opostos, mas, depois de algumas conversas, num banco qualquer da orla da praia, eles decidiram caminhar juntos. Um adentrando o território do outro. Ninguém mais estava na contramão. Primeiro o nome, depois o sobrenome, depois o-que-você-faz-da-vida, e depois aonde-você-gosta-de-ir. E aquele punhado de perguntas até chegar ao famoso quer-jantar-comigo? “Seria ótimo.” Essa foi a resposta dele ao convite dela. Ele não era de muitas palavras. Dizia sempre o necessário. Ela sempre tinha que controlar a vontade que tinha de despejar sobre ele o seu mar de palavras. Mas ela sabia que ele poderia se afogar. Depois do convite, veio a insegurança. Impossível é encontrar uma pessoa que seja segura em relação ao amor.  Como seria? O que aconteceria? Sem se arriscar, ela jamais saberia. A campainha toca e ela se assusta como se estivesse dormindo. Ele chegou. O coração salta freneticamente em seu peito. Ele chegou. Ela quer que dê certo. O vinho estava sobre a mesa. Ela não pretendia beber muito. Tinha medo da mistura de álcool com o olhar embebido de mistérios dele. Foi até a porta, respirou fundo e abriu. Ele sorriu e ela retribuiu o sorriso.
– Posso entrar? – Ele perguntou.
– Entre. – Ela respondeu desejando que ele pudesse ficar pra sempre ali com ela.
Jantaram. Conversaram. Beberam vinho. Ela estava embriagada pelo olhar dele e certa de que ele era um perigo pra ela. Mas ele era o melhor perigo que ela poderia correr. Quando ele a tomou pela cintura e a beijou ela sentiu que os beijos dele eram como um veneno. E quanto mais ele a beijava, mais ela queria. Ela queria o veneno doce que os lábios dele ofereciam. Ele não queria mais uma. Ele a queria. No simples. Nas palavras. No olhar discreto com que ela perscrutava cada movimento dele. Ele a queria com toda aquela urgência e insegurança de mulher. Ele deixou de ser moleque-que-quer-só-uma-transa. Ele desejava ser o lugar seguro para ela. Ela queria se abrigar nele. Eles queriam ser um. Quando eu olhava pra ele, enxergava-a. E quando eu olhava pra ela, enxergava-o. Os dois se confundiam. Os dois se misturavam de uma forma linda. Eles não formavam um casal perfeito. Isso não existe. Eles aprenderam a juntar suas diferenças, suas limitações para serem pessoas melhores. Um para o outro. E em cada limitação eles se construíam, se destruíam e voltavam a se reconstruir. Amor é isso. É estar indo ao chão e se reconstruindo tantas e tantas vezes. 


sábado, 4 de maio de 2013

Ela e a luz


Abriu as janelas do quarto. Era um novo dia. Mas, por dentro, ainda havia sobras de um ontem amargo e mal vivido. Quisera ela que as janelas de sua alma se abrissem com a mesma facilidade que as janelas de seu quarto se abriam. Suas forças se esvaíram e ela foi ao chão. Sua alma se trancou dentro de si com medo da luz do dia. Depois que se passa muito tempo na escuridão, a alma da gente se acostuma com os breus e deles não quer mais se apartar.
Era assim quando ainda estava segura, tranquila e protegida do mundo, no seio materno. Ela desejou regressar ao útero de sua mãe. Lugar secreto, escondido, o melhor canto de mundo que já foi criado. Queria aquecer sua alma, invernada, nas centelhas do amor, no entanto, só lhe restou a solidão e o frio existencial sendo acolhidos pelo piso claro de seu quarto meio bagunçado.
Tudo bagunçado. Do lado de fora é muito fácil arrumar, colocar em ordem, deixar limpo. Mas, quando se trata do lado de dentro, a gente se perde e esquece que o tempo tem se apressado e não temos conseguido acompanhar seus largos passos. O tempo. Ah, o tempo passa. Ela não. Ela se recusava a passar com o tempo. Tudo bagunçado. Esqueceu? Ela deixou o passado bagunçado. O passado morava em seu presente. E o seu presente nunca era vivido. Quis, mais uma vez, ter forças suficientes pra se levantar, se manter firme diante das janelas abertas e deixar o sol aquecer seu corpo esguio de menina.
Levantou-se e sustentou todo o peso de seu corpo sobre os pés de bailarina que desistiu da dança. A vida tocava, mas ela não dançava mais. O peso da culpa e o medo de aceitar suas falhas incapacitaram-na de dançar. Tudo escuro. Tudo sujo. Tudo pesado. Tudo bagunçado. O mundo estava sobre suas costas. Suas costas carregavam o mundo. A leveza da menina se foi quando ela decidiu que ia crescer. E crescendo, esqueceu de suas limitações.
É preciso se perdoar, menina. Aceitar que aconteceu. Aceitar que não deu. Aceitar que há dias escuros que só voltaram a se iluminar quando abrirmos as janelas da alma sem medo da luz. Os breus que nos cobrem a alma são os medos que nos limitam a visão. Você sabe. Eu já te disse, menina. Você deve ter esquecido. Ver, ou melhor, enxergar dói. Ver além da superfície é mergulhar com os olhos. E quando dói muito a gente prefere ficar cego.
Ela abriu os braços como se pudesse abraçar toda luz e quentura que emanavam do sol naquela manhã. Sentiu-se estranhamente confortável com aquela luz tocando sua pele e com o calor que tomava seu corpo. Cerrou os olhos com força e desejou intensamente voltar à superfície. Era como se a luz pudesse penetrar sua pele e beijar sua alma. E, no beijo, se tornaram uma só. A luz e ela. Ela e a luz.